Entenda os impactos do decreto que permite a destruição de cavernas brasileiras

11 de fevereiro de 2022

Em entrevista, o Biólogo Enrico Bernard explica as consequências da medida para o meio ambiente, a biodiversidade, o agronegócio e a saúde da população

Lapa do Carlúcio, Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, Januária, Minas Gerais. (Foto: Biólogo Rodrigo Lopes Ferreira)

O governo federal publicou, no dia 12 de janeiro de 2022, o Decreto nº 10.935, que dispõe sobre as cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional. O decreto revogou as normativas anteriores, flexibilizando e reduzindo os mecanismos de proteção das cavernas brasileiras. 

Além dos retrocessos relativos ao licenciamento e à compensação ambiental, a medida permitiu impactos irreversíveis em cavidades subterrâneas de todo o país, inclusive aquelas classificadas como de máxima relevância. 

A gravidade da situação levou o Conselho Federal de Biologia (CFBio) a se unir a entidades da comunidade científica, acadêmica e da sociedade civil, posicionando-se contrário ao decreto e fazendo um apelo às autoridades por sua imediata revogação. No dia 24 de janeiro, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu parte do decreto presidencial. O STF agendou o julgamento sobre sua constitucionalidade para ocorrer, de forma virtual, entre os dias 18 e 25 de fevereiro. 

A fim de esclarecer os impactos desse decreto para o meio ambiente, a biodiversidade, o agronegócio e a saúde da população, conversamos com o Biólogo Enrico Bernard, presidente Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ) e professor associado do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Enrico é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e doutor em Biologia pela York University, no Canadá. 

Confira a entrevista, na íntegra, a seguir:

O que a legislação anterior estabelecia em relação às cavernas brasileiras de máxima relevância?

Enrico Bernard: As normativas anteriores (no caso, o Decreto nº 6.640/2008 e o Decreto nº 99.556/1990) estabeleciam que cavernas de máxima relevância no Brasil não podiam ser impactadas negativamente. A lei era clara: uma caverna dentro de uma área passível de licenciamento ambiental tinha que passar por um processo de classificação de relevância. Esse processo conferia a elas as categorias de relevância máxima, alta, média ou baixa. E os decretos diziam o seguinte: cavernas de máxima relevância não podiam ter impactos negativos permanentes, ou seja, não podiam ser impactadas.

O que mudou com esse novo decreto?

Enrico Bernard: O decreto presidencial publicado no dia 12 de janeiro de 2022 altera esse entendimento, permitindo que os empreendimentos gerem impactos irreversíveis em cavernas de máxima relevância. A redação estabelece, ainda, que o órgão ambiental pode permitir esses impactos caso julgue que as atividades decorrentes do empreendimento são de interesse público. Ou seja, se o órgão ambiental determinar que a obra é de interesse público, o impacto irreversível fica permitido, inclusive em cavernas de máxima relevância, o que antes não ocorria.

 

A nova medida modifica a definição dos órgãos responsáveis pelo licenciamento?

Enrico Bernard: O decreto enfraquece a participação do Ibama e do ICMBio e fortalece a participação dos órgãos estaduais de licenciamento. Segundo a norma, órgãos estaduais passam a ter o poder de alterar, a qualquer momento, o processo de classificação de cavernas. Ou seja, o órgão ambiental estadual pode contestar a classificação de relevância das cavernas caso algum empreendimento peça reavaliação ou algum funcionário do próprio órgão considere que a classificação não é pertinente.

 

Mas, nesse caso, a reclassificação seria feita pelo órgão federal ou estadual?

Enrico Bernard: Na norma anterior, havendo novas informações, o processo de reclassificação também poderia ser feito, mas por um órgão federal, no caso o IBAMA e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV), ligado ao ICMBio. Agora, o decreto diz que o processo não precisa passar por esses órgãos federais. O órgão estadual poderia questionar e reclassificar as cavernas perante provocação ou iniciativa própria.

 

Essas modificações são bem preocupantes, não é mesmo?

Enrico Bernard: Esses três pontos, por si só, já são de alta gravidade. Primeiro, por abrir a possibilidade de impacto irreversível em caverna de máxima relevância; segundo, por dar ao órgão ambiental a autonomia de estabelecer se o empreendimento é de utilidade pública, a fim de autorizar esses impactos; e terceiro, por permitir que o órgão ambiental altere, a qualquer momento, perante provocação, o processo de classificação das cavernas já classificadas como de máxima relevância.

 

Houve alguma alteração quanto aos requisitos adotados para classificação das cavernas?

Enrico Bernard: Esse seria o próximo passo. O decreto determina a elaboração de ato conjunto dos ministérios de Meio Ambiente, de Minas e Energia e de Infraestrutura para dispor sobre a metodologia para classificação do grau de relevância das cavernas, sobre atributos ambientais similares e sobre outras formas de compensação ambiental. Isso é preocupante porque não vimos a redação ainda, mas obtivemos informações de que as empresas mineradoras estão com essa redação e já estão se preparando para fazer solicitação de alteração de classificação. Outra coisa grave é que essa instrução normativa era uma atribuição do Ministério do Meio Ambiente; o decreto deixa claro, agora, que a instrução normativa é uma atribuição do Ministério das Minas e Energia, Ministério da Infraestrutura e Ministério do Meio Ambiente, mudando sua origem, que passa a ser conjunta.

 

Que características tem as cavernas consideradas de máxima relevância?

Enrico Bernard: Quando uma caverna é classificada de máxima relevância, o próprio nome já diz que ela tem atributos que a tornam excepcional. No aspecto biológico, esses atributos vão desde espécies ameaçadas de extinção, algumas delas criticamente ameaçadas, até espécies hiper endêmicas, que ocorrem em uma única caverna, ou seja, em nenhum outro local no mundo. Caverna é um local que tem muitos desses casos de endemismo. Além disso, hoje, no Brasil, há mais de mil espécies descobertas em cavernas e que estão aguardando descrição formal da ciência. Trata-se de um conjunto de informações biológicas extremamente relevante.

 

Por que essas informações biológicas são relevantes?

Enrico Bernard: As cavernas são apontadas, no mundo inteiro, como locais em que há maior possibilidade de descoberta de novas espécies. Essas cavernas abrigam soluções e adaptações evolutivas fantásticas. O primeiro caso de inseto com o sexo invertido foi encontrado dentro de uma caverna. As formas de obtenção de energia são ultra especializadas, únicas, singulares, insubstituíveis, só existem dentro das cavernas. Isto é, tem um monte de soluções evolutivas que podem ser interessantes para a gente. Existem microrganismos com potencial biotecnológico e com soluções que apontam para caminhos de otimização de processos de energia.

Que impactos o novo decreto, em sua redação atual, pode gerar ao meio ambiente, à biodiversidade e à saúde?

Enrico Bernard: As cavernas são muito importantes para o abastecimento de lençóis freáticos e de água e para evitar pulsos de inundação, porque elas funcionam como sumidouros. Quando ocorrem grandes enchentes, essas cavernas funcionam como ralos, puxando a água e evitando mais inundações. As cavernas também abrigam populações de morcegos que prestam serviços ecossistêmicos importantes. Existem cavernas de máxima relevância com populações de centenas de milhares de morcegos. Toda noite esses bichos saem e se alimentam de insetos que são pragas agrícolas e que são vetores de doenças. Essas cavernas, e os morcegos que estão dentro delas, contribuem com o agronegócio e com a saúde do brasileiro.

 

A destruição de cavernas pode dificultar o combate da pandemia de Covid-19?

Enrico Bernard: Em tempos de pandemia, a gente tem uma preocupação a mais. A destruição de habitats coloca as populações de animais em situação de estresse. Isso mexe com o sistema imunológico desses animais, o que pode fazer com que patógenos se manifestem de maneira alterada. Destruir cavernas com populações de morcegos, nesse momento, é perigoso, porque podem ocorrer desequilíbrios que potencializem a transmissão de patógenos.

Você acredita que o decreto pode vir a ser revogado?

Enrico Bernard: O impacto foi negativo e forte. Esse decreto possui uma redação problemática, que não foi debatida com a sociedade civil e que não foi submetida à discussão técnica. A comunidade que trabalha com cavernas no Brasil e no mundo ficou em choque; submetemos uma carta para a Science, assinada por 91 pesquisadores de 33 países. Além disso, nesse momento, já tem uma série de contestações jurídicas, sendo que o próprio Supremo Tribunal Federal julgará sobre a sua constitucionalidade. Creio que esse decreto foi, na verdade, um tiro no pé.

Fonte: CFBio