O filme “Óleo de Lorenzo” (1992), baseado numa história real, mostra o drama que uma família passa a viver quando seu filho de seis anos é diagnosticado com adrenoleucodistrofia (ALD), uma doença degenerativa rara e incurável que desgasta a mielina (presente no neurônio), provocada pelo acúmulo de gorduras saturadas. Determinados, os pais passam a buscar por conta própria a cura para a doença.
Situação semelhante viveu o Biólogo Fabian Borghetti (CRBio 9.206/04-D) ao descobrir, em dezembro de 2018, que o filho tinha um meduloblastoma de grau 4, nódulo maligno localizado entre o tronco cefálico e cerebelo. O Biólogo, que já estudava trabalhos que tratavam das propriedades medicinais da Cannabis sativa, passou a dedicar seu tempo para estudar os efeitos medicinais da planta em tratamentos oncológicos.
Fabian é graduado em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em Biologia Molecular pela Universidade de Brasília e pós-doutor em fitoquímica pela Universidad de Cádiz, Espanha, e em modelagem matemática dos efeitos do clima na dinâmica de ecossistemas pela University of California, em Santa Cruz. É Professor Associado do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília.
Nos períodos em que morou na Espanha e na Califórnia, regiões onde o uso medicinal e/ou recreativo de Cannabis sativa já estava legalizado, aproveitou para aprofundar seus conhecimentos botânicos e medicinais sobre a planta. Duas semanas após a retirada do tumor de seu filho pela equipe médica na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, e já conhecedor do potencial medicinal da planta, Fabian entrou em contato com uma médica de São Paulo, Dra. Paula Dall’Stella, neuro-oncologista e prescritora de Cannabis medicinal. A médica recomendou o uso do óleo de canabidiol (CBD), um entre dezenas de canabinóides não psicotrópicos extraídos da Cannabis. O produto, importado com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), passou a ser ministrado ao mesmo tempo em que os protocolos médicos tradicionais (como radioterapia e quimioterapia) eram seguidos.
Os efeitos do uso do CBD foram progressivos e duradouros: redução dos efeitos colaterais ocasionados pela administração dos quimioterápicos, como náuseas e perda de peso; manutenção dos padrões de alimentação; redução de dores de cabeça; sono regular, entre outros benefícios. Com isso, não houve necessidade da administração de remédios usualmente utilizados como complementos aos tratamentos radio e quimioterápicos, como corticóides e anti-heméticos. E também não houve necessidade de transfusões de sangue, visto que o sistema imunológico do paciente foi fortalecido pelo uso do CBD. Com isso, a criança foi curada de uma maneira muito mais saudável e menos agressiva ao seu organismo.
Estudos in vitro mostram que o uso concomitante de CBD e THC (tetraidrocanabinol) reduz as taxas de proliferação de células tumorais, sem causar qualquer dano nas células benignas. Em alguns países, como Espanha, Israel e Estados Unidos, estudos conduzidos in vivo também revelam efeitos antitumorais de canabinóides extraídos da planta.
No Brasil, um recente trabalho publicado pela Dra. Paula Dall’Stella, que também é pesquisadora do Hospital Sírio-Libanês, e colaboradores relata os benefícios do uso complementar de CBD em pacientes adultos com tumores malignos, como melhoria na eficiência dos tratamentos radio e quimioterápicos, melhoria do sono e dos padrões de alimentação, maior disposição e qualidade de vida. Fabian destaca que inúmeros estudos e relatos empíricos mundo afora comprovam a eficácia do uso de produtos derivados de Cannabis sativa no tratamento de pessoas com câncer, Alzheimer, epilepsia, além dos benefícios como controle do apetite, combate à insônia, dor crônica, entre mais uma miríade de efeitos positivos ocasionados pelo uso de extratos da planta, sejam eles brutos ou purificados.
Plantio da Cannabis é solução para o custo elevado do produto
Em dezembro de 2019 a Anvisa publicou a RDC 327, que dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, a prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais. Com isso, empresas podem importar o produto já extraído das plantas para preparo de fármacos que podem ser comercializados no Brasil.
Para Fabian, a liberação é apenas o primeiro passo. “Essa regulamentação ajuda, mas não resolve”, constata. O custo do produto importado é bastante elevado, o que impossibilita a aquisição pela população de baixa renda. Segundo ele, recentemente foi lançado no mercado um produto contendo CBD purificado, cujo frasco de 30 ml custa mais de R$2 mil. Na avaliação do Biólogo, uma das medidas para resolver o problema é criar legislação que permita que pacientes e associações, como a Aliança Verde, de Brasília, possam plantar, colher, extrair e preparar seus próprios fármacos e destinar o produto a pessoas que não têm condições de comprá-lo. “A Aliança Verde, da qual faço parte, conta com 136 pacientes, sendo 50 menores de idade que apresentam autismo, paralisia cerebral e síndromes raras, e 50 idosos com Parkinson, Alzheimer, entre outras, a grande maioria de baixa renda. Com a devida regulamentação, os pacientes teriam maior acesso aos produtos derivado de Cannabis”. A devida legalização do mercado canábico no Brasil gerará emprego e renda aos envolvidos na cadeia produtiva, permitirá o rastreamento genético das plantas, maior fiscalização e controle de qualidade dos seus produtos e reduzirá enormemente o valor do produto final, tornando-o mais acessível à população.
Para viabilizar a produção nacional é essencial que haja um marco legal que permita o plantio da Cannabis sativa no território brasileiro. O país oferece imensa área cultivável, alta luminosidade, temperaturas amenas, boa disponibilidade de água e fotoperíodo condizente com os padrões de crescimento e floração da planta. As regiões centro-oeste e nordeste são as que mais favorecem o plantio. Já a região amazônica pode não ser tão favorável em razão da alta pluviosidade – as plantas se desenvolvem melhor em ambientes ensolarados. Na região sul, em razão das baixas temperaturas, a janela de plantio é mais restrita, visto que a planta também se desenvolve melhor em temperaturas médias mais elevadas.
O mercado de cannabis movimenta bilhões de dólares no mundo inteiro. Estudo realizado pela BDS Analytics e pela Arcview Market Research projeta que a comercialização de CBD pode ultrapassar US$ 20 bilhões em 2024, isso apenas nos Estados Unidos. Segundo Fabian, na Califórnia esse mercado responde por um terço do mercado americano. Com cerca de 40 milhões de habitantes e mais de um milhão de pacientes canábicos, estima-se que até 2026 o mercado canábico na Califórnia possa atingir cifras de até US$ 25 bilhões. Isso significa que além de ter sua eficácia reconhecida pela ciência, a cadeia produtiva da Cannabis gera receita, empregos e renda. “Diante do cenário de encolhimento global da economia devido à pandemia da covid-19, o mercado canábico poderia ser uma excelente alternativa para alavancar a economia brasileira”, ressalta Fabian.
Embora reconheça que o atual momento político seja desfavorável a avanços relacionados ao plantio e comercialização de Cannabis, Fabian acredita que isso será superado. Enquanto o poder legislativo não decide sobre o tema, o judiciário está se antecipando e emitindo Habeas Corpus (HC) para que pacientes possam cultivar a planta e produzir seus próprios óleos em casa.
O Biólogo destaca que em 2020 mais de 70 HCs já haviam sido emitidos no Brasil. “Esses solavancos políticos são temporários. Estamos num momento crítico de retrocessos, e isso vai atrasar, mas não vai impedir que tenhamos um mercado legalizado em breve”, enfatiza.
Em junho de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do judiciário. O colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.
* Matéria com atualizações, publicada originalmente na Revista BioParaná nº 43.