Superbactérias: iminência de uma nova pandemia?

18 de janeiro de 2021

* Matéria publicada na edição nº 45 da Revista BioParaná. Confira a reportagem completa aqui

Em artigo científico publicado em 2007 pela American Society for Microbiology, cientistas chineses alertavam que o consumo de carne de animais exóticos era uma “bomba-relógio” e poderia resultar na disseminação do vírus SARS-CoV, causador da síndrome respiratória aguda grave (SAR) (saiba mais). “A possibilidade de ressurgimento da SARS e de outros novos vírus em animais ou laboratórios e a necessidade de preparação não deve ser ignorada”, diz o texto. Passados treze anos, a pandemia do SARS-CoV-2, causador da Covid-19, não só comprovou que eles estavam certos como mostrou que o mundo não estava preparado para esse acontecimento.

Mas há outro alerta ligado que, igualmente, vem sendo ignorado: o uso inadequado de antimicrobianos e antibióticos e o risco de contágio por superbactérias. Em 1945, ao receber o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta da penicilina, Alexander Fleming advertiu em seu discurso: “Existe o perigo de que um homem ignorante possa facilmente se aplicar uma dose insuficiente de antibiótico e, ao expor os micróbios a uma quantidade não letal do medicamento, os torne resistentes”.

A Assembleia Mundial de Saúde, órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS) composto por 194 países, aprovou em maio de 2015 um plano de ação mundial sobre a resistência aos antimicrobianos, que inclui a resistência aos antibióticos. O objetivo é assegurar que se possa seguir prevenindo e tratando enfermidades infecciosas por meio de fármacos eficazes e seguros.

O estudo Review on Antimicrobial Resistance, encomendado pelo governo britânico, estima que se nenhuma medida for tomada as superbactérias provocarão cerca de 10 milhões de mortes, tornando-se a primeira causa de morte no mundo. Além disso, de acordo com o Banco Mundial, as superbactérias poderão custar até 3,8% do PIB global.

Causas da existência de superbactérias

“Geralmente elas surgem devido ao uso incorreto de antimicrobianos, que favorece a seleção de micro-organismos resistentes”. A afirmação é da Bióloga Amanda Lys dos Santos Silva (CRBio 105.797/08-D), mestre em Genética e Biologia Molecular e doutora em Ciências; professora adjunta no setor de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS/UFAL) e produtora de conteúdo científico na Bio Educação Digital (conheça o blog Biologia para Biólogos).

Para facilitar a compreensão ela dá um exemplo: considere um indivíduo com infecção bacteriana que foi orientado a tomar o medicamento “X” durante 8 dias. No 5° dia, o paciente interrompe o tratamento por se sentir melhor. Nesse momento, grande parte da população microbiana foi reduzida pois o antimicrobiano foi eficiente contra as bactérias suscetíveis, mas algumas das bactérias causadoras da infecção podem permanecer viáveis por abrigarem genes de resistência (surgidos naturalmente por mutação espontânea ou adquiridos por outras bactérias). Ou seja, apesar do stress causado pela presença do medicamento, nem todas morreram; e quando as condições estiverem favoráveis novamente, as bactérias sobreviventes se multiplicarão e passarão a característica da resistência aos seus descendentes. Nessa transmissão vertical surge uma cepa resistente ao antimicrobiano “X”; esse, por sua vez, passa a ser ineficaz no tratamento da doença. Para dar conta desse problema, a indústria farmacêutica precisa produzir medicamentos cada vez mais fortes e diversificados, enquanto novas e mais poderosas opções de defesa bacteriana evoluem, tornando algumas bactérias resistentes a quase tudo.

Apesar de muito importante, diz a Bióloga, o mau uso do medicamento não é a única causa da existência das superbactérias. Fatores ambientais podem ser de igual ou maior importância para a disseminação da resistência aos antimicrobianos, especialmente nos locais com baixa qualidade de água e saneamento. A explicação é simples: em regiões pobres, a maior parte da matéria fecal, contendo genes e bactérias resistentes, acaba indo diretamente para as águas superficiais e subterrâneas, sem nenhum tratamento prévio. Embora as estações de tratamento de esgoto não sejam perfeitas, elas reduzem substancialmente a carga microbiana resistente que é liberada no meio ambiente. Dessa forma, as pessoas que vivem em locais sem saneamento básico acabam se expondo à resistência aos antimicrobianos de várias maneiras, mesmo sem ter feito uso de qualquer medicamento.

Os riscos de uma nova pandemia

Para Amanda Lys, não há dúvidas de que é possível uma pandemia de superbactérias, e até pior que a pandemia de Covid-19, já que micro-organismos multirresistentes podem se desenvolver em qualquer país ou região e se espalhar de maneira muito rápida, mesmo em locais onde os medicamentos não estão presentes, como as regiões polares. É fato que a resistência aos antimicrobianos existe desde o início da vida, mas recentemente se acelerou devido ao uso humano. A ação humana frente à Covid-19 inclusive já deu sua contribuição nesse cenário, quando antimicrobianos foram amplamente utilizados numa tentativa desesperada de combate ao vírus ou como tentativa para fortalecimento do sistema imunológico. “É apenas uma questão de tempo até que sejam observados os efeitos na população do uso desenfreado desses medicamentos em escala global”, constata a Bióloga.

Por outro lado, com a pandemia atual ficou provado que serviços de água, saneamento e higiene (uma técnica conhecida como WaSH, do inglês Water, Sanitation, and Hygiene) geridos com segurança são uma parte essencial da prevenção e proteção da saúde humana durante surtos de doenças infecciosas, mas isso não significa que a próxima pandemia vai ser fácil de administrar. Mais importante do que pensar se estamos preparados para uma pandemia de superbactérias, o foco deve ser a prevenção. “Enquanto as condições forem propícias para o surgimento desses micro-organismos, a resistência aos antimicrobianos continuará a aumentar, prejudicando nossa capacidade de tratar todos os tipos de doenças infecciosas e criando potencialmente a próxima pandemia”, alerta Amanda.

Ações para reduzir a resistência antimicrobiana

Uma das medidas sugeridas pela Bióloga Amanda Lys é comprar o medicamento apenas sob prescrição médica e fazer uso dele de acordo com o recomendado pelo profissional. No geral, segundo ela, esse uso moderado de antimicrobianos é uma atitude individual que ajuda bastante, mas tal ação isolada não resolve a luta contra a resistência; é preciso impedir o contágio. Nesse sentido, uma das estratégias mais econômicas é o investimento na infraestrutura básica de saúde pública, e isso inclui gestão de resíduos, saneamento e qualidade da água em escala global. “É claro que nesse pacote a gente não pode esquecer a educação, que é essencial para a conscientização dos indivíduos sobre a importância do consumo de água potável e do descarte adequado dos rejeitos na natureza. Se o acesso à água de qualidade estiver garantido em todos os lugares, a disseminação de bactérias resistentes a antimicrobianos será reduzida em todo o meio ambiente”, conclui.